Grupo Iuna de Capoeira Angola: O que tem-nos dito? Como responder?

“Camugerê, como tá, como tá?

Côro: Camugerê
Como vai voismecê?
Côro: Camugerê
Eu vou bem de saúde
Côro: Camugerê
Para mim é prazer”

Saber ancestral, canto da Capoeira.

Estava lendo o artigo de Jan Masschelein e Maarten Simons  “O aluno e a  infância: a propósito do pedagógico” nele eles fazem, a partir de uma distinção realizada por Jacque Rancière entre política e polícia, povo e população, uma distinção entre regime pedagógico e o pedagógico, entre aluno e infância. Não me referirei ao tratado neste artigo. Quero em troca, fazer uma tentativa de exercício do pensamento, um jogo a partir de uma afirmação realizada pelos autores:

O pensamento não pergunta o que é uma coisa, se ela existe e porquê. Ele sempre toma sua existência como dada, e pergunta o que significa que ela exista. O que nos foi dito e como responder a isso. (MASSCHELEIN e SIMONS, 2014, p.35)

O pensamento não se pergunta se algo existe e porque, afirmam eles. Senão ele dá a existência da coisa por dada. A pergunta se desenvolve em relação ao significado que pode ter a existência da coisa. O  que nos diz?, como responder a isso? Quero perguntar-me o que nos tem dito o Grupo Iuna de Capoeira Angola,  que significados poderia ter sua existência,  como posso ou poderíamos responder a isso que nos tem dito.

Durante parte do ano 2015 e 2016 estivemos participando das atividades do Grupo Iuna de Capoeira Angola (Belo Horizonte, Brasil). Tivemos treinamentos de capoeira com o Mestre Primo, ou simplesmente Primo, como nós chamamos ele. Ele em 1983 funda e desenvolve atividades com esse grupo. Duas vezes por semana treinamos. De 7hs as 8hs30. Depois, nos damos o tempo para compartilhar uma comida juntos e conversar entre os presentes sobre o tema que aí nos convocava: capoeira. A continuação quero compartilhar algo do compartilhado nestes encontros.

A capoeira não se vende.  O primo não aceita nenhum tipo de pago por participar dos seus treinos. Também não exige uniforme, alguma roupa em particular ou outro tipo de condição. As  7hs ele está aí, na sala principal de um pequeno prédio de três andares o qual pertence a ONG Iuna. Se tem ou não alunos e alunas é algo que não interfere no seu treinamento. Ele realiza a sua rotina independentemente da presença de alunos ou alunas.

Na capoeira não existem níveis ou títulos a ganhar. Como escreveu no seu diário Paula Gontijo, uma amiga que também vem treinando com esse grupo, a partir de uma das conversas que tem tido com Primo,

Na capoeira, não existe um produto final, não existe regra nem estágios a serem cumpridos, não existe um objeto ou serviço a ser adquirido. O que existe é uma experiência aberta, sem final, nem linha de chegada, um processo contínuo e infinito de autoconhecimento. Questão que não se adquire, compra-se, ou troca-se, apenas vive-se. Eterna prática de liberdade dos processos que nos escravizam, sejam eles internos ou externos a nós. (GONTIJO, mensaje personal, 10/01/2016).

A capoeira é patrimônio cultural da humanidade, ela não é um produto  -algo dito pelo Primo uma e outra vez-, e talvez esta seja uma das principais razões pelas quais ela não pode ser vendida. Ela é um caminho de liberdade ensinado (vivido/exposto) pelos nossos ancestrais. Para Primo, de fato, é triste ver a “capoeira” à venda e com esse gesto, ver ela feita um produto ao que as pessoas à margem da economia, no Brasil -e provavelmente no mundo- principalmente a população negra, encontram dificuldade em ter acesso. Outro dos problemas que traz a sua mercantilização, quando os alunos e alunas pagam por ela, é em referência a liberdade do mestre. De alguma ou outra forma a capoeira e o desenvolvimento dela através da vida do mestre, na opinião de Primo, se vê condicionada pelos desejos e expectativas de quem paga.

Praticar capoeira, em si mesmo, te oferece liberdade. Sua prática te oferece saúde, que é, para o Primo, a maior liberdade que uma pessoa pode ter. Ela te dá a possibilidade de viver, “se esquivar, se proteger, achar novas formas de vida, novas formas de enfrentamento”(GONTIJO, mensaje personal, 10/01/2016).

A pessoa com a qual se joga é uma companheira, ela te ensina. Como escreve Paula,

Em relação ao outro, outro da luta, ele não está ali como rival. A relação traçada com ele não é de competição ou disputa. O outro é parceiro para que você descubra a si mesmo, para que ele te ajude a ver seus limites, suas fraquezas, para que vocês aprendam junto. É na relação com o outro que você se aprimora. Uma relação de respeito recíproco. (GONTIJO, mensaje personal, 10/01/2016).

Isso é visível, ao menos no Grupo Iuna, em qualquer momento durante os treinos ou na roda de capoeira. Qualquer quem chega, independentemente da relação que tenha com a capoeira, à hora de jogar, se respeita, e se olha de forma que seja possível que também te ensine, nesse momento ou que movimentos são ou não apropriados a se fazer. Se esse respeito não existe diz o Primo, aparece o “berra boi” o berimbau mais grave da roda, que costuma ser tocado pelo mestre Ele impõe o respeito quando este falta entre os jogadores”(GONTIJO, mensaje personal, 10/01/2016), é esse para o Primo, a função da pessoa que educa. A educadora, a mestre é aquele que chama atenção para o que se está fazendo. Mas não é o único que ensina. A outra pessoa -seja quem seja- aquela com a qual se joga, também ensina.

Para o desenvolvimento da liberdade, da capoeira, o território é de vital importância. A capoeira é um jogo no que os jogadores e/ou jogadoras estão cuidando o seu espaço, espaço sobre o qual as pessoas se desenvolvem. Como nos tem dito Primo, uma e outra vez, algo que facilita o processo de pesquisa e ensino da Capoeira Angola realizado pelo Grupo Iuna, é contar com seu territorio propio. Primo pediu a sua família, no seu momento, a parte de cima da casa de sua mãe, para fazer a escola de Capoeira, tempo depois com apoio de pessoas da Itália, a foram construindo. Também tem contado com apoio do Ministério da Cultura do Brasil, sendo reconhecida e financiada como Ponto de Cultura.

Hoje a escola conta, com um primeiro andar, onde tem uma biblioteca, uma cozinha grande e uma sala de reuniões. Nesse espaço, se oferece apoio escolar, cursos de cozina, e às sextas feiras depois da roda de capoeira realizam uma confraternização. No segundo andar, tem uma sala grande de chão de madeira, e no fundo os instrumentos necessários para a prática da capoeira. E uma sala pequena, com outros instrumentos, usados para o ensino de música.  No terceiro e último andar, um quarto com uma terraça, onde mora o Primo com licença da ONG Iuna. Com o prédio próprio da ONG, os gastos são menores, só para pago de serviços e manutenção do espaço.

Com isto, quero comentar algo que também sinto que me foi dito nesse espaço. E é a relação entre o que se diz e o que se faz. Entre o exercício da capoeira e a vida ou a capoeira como forma de vida. O falar do Primo é algo que parece estar tecido com sua vida. Na qual se tem ido transformando. No início, por exemplo, chegou a cobrar por ensinar capoeira, com o passar do tempo, foi vendo significados nisso com os quais não concordava e procurou outra formas, como desenvolver o seu espaço próprio, que lhe possibilite outras maneiras de desenvolver o seu trabalho.

Para nós foi um achado o Grupo Iuna de Capoeira Angola. Sentimos que são poucos os espaços, ao menos hoje, nos quais se compartilha algo, nos quais as pessoas são recebidas sem ter que pagar. O mesmo Primo se refere a isto. Quando cobramos por educar é como se deixássemos a nova geração desprotegida. Talvez seja esse um dos significados que tenha para nós o que nos tem sido compartilhado, o da proteção, o do cuidado para com a outra pessoa, para com nós mesmos.

Agora, que outros significados vejo no que nos tem sido dito? Parece-me difícil responder. Pergunto-me se não estará uma possível resposta a essa pergunta, na minha própria escrita e forma de escrever, no que tenho selecionado entorno ao que tem sido compartilhado?

Dar resposta ao que me foi dito, é algo que também parece-me difícil. Uma primeira opção, que já tem estado tentada a fazer, é assumir o que o Primo diz como verdade, ou princípios a seguir. Ao que me questiono se seria essa uma forma legítima de responder, no sentido que talvez não seriam as minhas respostas.

O que nos foi dito, foi algo que foi compartilhado na prática. Treino após treino. Continuamos treinando, durante a nossa viagem. E compartilhamos o treino com quem o deseje. Uma rotina semelhante a que compartilha Primo. Talvez seja essa uma forma de responder a isso que nós tem dito. Ou não sei se responder, senão talvez continuar escutando. Porque a capoeira não refere (apenas) a palavras. Refiere a vida, ao corpo. Com sua prática, talvez como também diz Primo, acessamos aquilo que ele diz, ao que tem falado e vivido, de alguma forma, nossos antepassados.
Referências

GONTIJO, Paula. Racunhos.  [Mensaje Personal]. Mensaje recebida por: <coricori18@gmail.com> el 10 de enero de 2017.

MASSCHELEIN, Jan. O aluno e a infância: a propósito do pedagógico. In: MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten. A pedagogia, a democracia, a escola. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. p. 09-26.

UNESCO. El círculo de capoeira. Disponible en: http://www.unesco.org/culture/ich/es/RL/el-circulo-de-capoeira-00892, Acceso el: 20/01/2017.

Foto tomada del facebook del Grupo Iuna de Capoeira Angola.