A Escola enquanto Tempo Livre e o Anteprojeto de Lei «Escola Sem Partido» – Algumas perguntas

Atualmente o Brasil vive uma discussão polêmica em torno do ante projeto de lei «Escola Sem Partido» (ESP.) Esse ante projeto de lei visa supostamente garantir que as escolas e salas de aula não sejam transformadas em espaços doutrinação ideologica, partidaria ou religiosa.

A proposta ja caminha para aprovação do Senado apesar de todo incomodo gerado em redes sociais, sindicatos e movimentos sociais. Um dos argumentos contra sua aprovação é de que o ESP não foi fruto de uma discussão entre professores, estudantes e comunidade, e de que a intenção da lei é de censurar a escola retirando seu caracter critico. Essa disconfiança surge principalmente porque o ESP aparece exatamente em pauta num momento de polarização politica no país, onde ressurgem como importantes atores politicos, os movimentos estudantis, tanto universitario quanto a nível de ensino médio.

Esse contexto nos possibilita voltar levantar a importancia de algumas questões importantes, que nos parece muitas vezes esquecida: temos claro ou mantemos aquecida a discussão sobre o que é uma escola, qual o seu papel, o que é educação e qual é o papel do professor? Esse tipo de discussão habita os locais onde as leis que incidem sobre a educação são elaboradas? Ou mesmo, essa discussão habita as escolas?

Uma interessante investida a favor desse debate vem do livro «Em defesa da Escola – uma questão publica», dos filosofos da educação Jan Masschelein e Maarten Simons. Questões que, muito além de respostas definitivas, merecem uma constante reflexão.

Para isso, os autores pesquisam as origens gregas do escolar, investigam a historia da escola, buscam fontes de pensamento e registro feitos sobre escolas e experiencias escolares ao redor do mundo.

No livro, dizem defender a escola e o escolar de ataques que visam tanto «domar» a escola em seu potencial transformador, quanto fim da instituição escola.

Esses ataques contra a escola derivam de um impulso para tornar o tempo livre fornecido por ela novamente produtivo e, desse modo, impedir a função de democratização e equalização da escola. (MASSCHELEIN; SIMONS 2013, p. 28)

Segundo os autores, a escola surge na polis grega como uma usurpação de privilegios de uma elite («aristocraticas e militares») e como uma conquista de tempo livre para todos, ou seja, tempo não produtivo, a qualquer pessoa, independente de sua origem, familia, classe social ou religião.

O termo escola deriva da palavra grega skholé, que significa tempo livre. Não no sentido de descanso e lazer, mas no sentido de um tempo não produtivo.

Na escola grega, não mais era a origem de alguém, sua raça ou «natureza» que justificava seu pertencimento à classe do bom e do sábio. (MASSCHELEIN; SIMONS 2013, p.26 )

Essa democratização do tempo livre teria sido, desde o inicio «uma pedra no sapato» de setores da sociedade que viam seus privilegios ameaçados, e desde ai se iniciam ataques a instituição escola e ao tempo escolar.

Talvez não devessemos ler a historia da escola como uma historia de reformas e inovações de progresso e modernização, mas como uma historia de repressão, uma série de estratégias e táticas para dispersa-la reprimi-la, coagi-la, neutraliza-la ou controla-la. (MASSCHELEIN; SIMONS 2013, p. 106)

Uma das caracteristicas do escolar tratada no livro, seria a suspensão. Dentro das escolas, as ordens e funções sociais em vigência no mundo são suspensas, inoperantes. No capitulo entitulado «libertar, destacar, colocar entre parentesis», argumentam que a suspensão proporcionada pela escola se aplicaria não somente aos alunos, que são descolados de suas origens sociais e passam a ser iguais enquanto estudantes, mas também a professores e matérias.

Ou, dito ainda de outra forma, o que a escola fez foi estabelecer um tempo e espaço que estava, em certo sentido, separado do tempo e espaço tanto da sociedade (em grego: polis) quanto da família (em grego: oikos). (MASSCHELEIN; SIMONS 2013, p. 26)

Muito simplesmente, isso significa que a escola dá as pessoas a chance (temporariamente, por um curto espaço de tempo) de deixar o seu passado e os antecedentes familiares para trás e se tornarem um aluno como qualquer outro.(MASSCHELEIN; SIMONS 2013, p. 31)

As matérias, que são os assuntos do mundo apresentados pelo professor aos alunos, tem suspendida sua função pratica, produtiva, convencional e cotidiana. São destacadas de seu uso para adquirirem unicamente a função de estudo, sem um objetivo social, produtivo ou religioso estabelecido.

Ou seja, a matematica é apresentada não para formar trabalhadores de contabilidade, mas apresentada enquanto matématica apesar de. O português não é apresentado para treinar estudantes para escreverem oficios, mas sim enquanto lingua, destacado de outras funções. E assim são apresentadas para a livre experimentação, uso e transformação pela nova geração.

Em certo sentido, deixar uma criança ser uma criança não é um slogam vazio. Isso significa permitir que uma criança esqueça os planos e expectativas de seus pais bem como os dos empregadores, politicos e líderes religiosos, afim de possibilitar que ela passe a ser absorvida pelo estudo e pela pratica.(MASSCHELEIN; SIMONS 2013, p. 101)

A livre experimentação a qual as matérias são submetidas, é discutida sob o termo profanação. A profanação faz que tudo que entre na escola seja destacado do uso que a velha gerarção dá para ser experimentada de qualquer outra maneira. Entra como matéria, aberta ao questionamento, a apropriação e a possibilidade de qualquer uso não convencional. A comunidade escolar é, nesse sentido, uma comunidade voltada para a pratica da profanação de conhecimentos e assuntos, que antes tinham um tipo de uso sagrado. A comunidade escolar é uma comunidade do conhecimento pelo conhecimento.

Ou, dito de outra forma: o material tratado em uma escola não está mais nas mãos de um grupo social ou geração particulares e não há nenhuma conversa de apropriação; o material foi removido – liberado – da circulação regular. (MASSCHELEIN; SIMONS 2013, p. 32)

Os professores são representantes da velha geração que não trabalham num mundo produtivo. Por amor, tanto a materia que leciona quanto a nova geração, invoca algo que pensa ser importante do mundo para dentro da sala de aula, cuidando para que a atenção dos alunos estejam voltadas para essa matéria no tempo entre o começo e o final da aula.

Essas e outras caracteristicas estudadas pelos autores, levariam a escola a ser uma instituição social que contribuiria com uma constante transformação da sociedade por parte da nova geração.

Uma transformação não governada ou direcionada pela velha geração.

Quando a porta da sala de aula se fecha, as determinações do mundo ficam do lado de fora, os alunos deixam de ser pobres ou ricos, de familias de médicos ou de sapateiros, cristãos ou atéus, e passam a ser todos igualmente alunos. Enquanto não termina a aula, dentro da sala, a matematica seria matématica independente de, e não para determinada função; a história seria uma historia apesar de, e não para compreendermos de tal maneira o passado para então determinarmos o futuro.

Os conhecimentos e assuntos ganham liberdade nas mãos da nova geração, para serem transformados, e assim, talvez possamos dizer, experimentarem na escola uma transformação do mundo.

Domando a Escola

Quando alguem tenta tornar produtivo ou direcionado o tempo escolar, estaria negando caracteristicas de suspensão e profanação da escola, e dessa forma, dando alguma função para o tempo livre, para o tempo de experimentação da nova geração através de procedimentos que domam a escola.

(O professor) Deve permitir que as crianças e os jovens renovem o mundo por meio do estudo e da pratica – através da forma como eles interagem com o mundo e dão o seu proprio significado a ele. Não fazer isso – e nesse caso, dizer «isso é importante, então você tem que lidar com isso dessa maneira»- significaria privar a nova geração da chance de renovar o mundo. Isso é, precisamente, o que Hannah Arendt (1961) insiste que os professores se lembre de quando ela, eloquente e acertadamente, diz que o professor age por amor ao mundo («isto é importante para nós, a velha geração») e por amor às crianças («cabe a você, a nova geração, moldar um novo mundo»). Isso é o que constitui a responsabilidade pedagógica do professor.(MASSCHELEIN; SIMONS 2013, p. 103)

No livro são tratados diversas maneiras praticadas de se domar a escola. A esse artigo, talvez o que mais nos interesse seja a sua politização.

Quando a escola se transforma no espaço e no tempo para se remediar problemas sociais, culturais ou economicos, a nova geração passa a ser responsabilizada de fazer politicas que a velha geração não é mais capaz ou ou não quer fazer.

O que é problematico sobre a politização da escola é que tanto os jovens quanto a matéria se tornam meios pelos quais os problemas sociais são encaminhados em um projeto de reforma política. Escola como política por outros meios. O que é neutralizado por isso é o tempo livre e a possibilidade de os jovens que experimentem a si proprios como uma nova geração. Se os jovens são imediatamente inseridos no velho mundo, já não permitimos a eles a experiência de ser uma nova geração. (MASSCHELEIN; SIMONS 2013, p. 111)

Algumas perguntas relacionadas

Depois dessa tentativa de contribuição com o debate sobre o papel da escola, sua origem e seus obstaculos, podemos trazar paralelos, tanto entre o ESP, quanto o que seu dito objetivo, ou seja, de combater o uso doutrinario e religioso da instituição escolar.

O anteprojeto de lei, Escola Sem Partido, identifica como uma deturpação do papel da escola, praticas como o uso ideologico ou religioso da sala de aula. No site www.escolasempartido.com, que promove e apoia a aprovação do projeto, é possivel encontrar mensagens e videos postados na internet, mostrando professores fazendo uso da sala de aula para propaganda politica partidaria.

Analisando essas praticas através do livro «Em defesa da Escola – uma questão pública», talvez possamos concordar que muitos professores politizam, nos termos do livro citado, fazendo uso doutrinario do tempo escolar.

Longe de apresentar respostas, prefiro aqui contribuir com algumas perguntas:

A partir de uma analise do livro «Em Defesa da Escola – Uma questão publica», o papel que pensamos ser o papel da escola, ou a maneira como atuamos nela, não estaria prejudicando a nova geração em sua vivência de auto experimentaçãor enquanto geração capaz de transformar e dar seu proprios rumos ao mundo? Em nossa visão de escola, não estariamos, (inconscientemente ou não) perpetuar as praticas do velho mundo, ou seja, da velha geração?

Com praticas doutrinárias (sejam religiosas ou politicas) é possivel a desvinculação dos alunos de suas origens? Estariam suspendidas origens sociais, religiosas ou politicas?

Professores que fazem esse tipo de uso do tempo escolar não estariam legitimando o uso tambem doutrinario de todas as outras ideologias e religiões, inclusive de outras das quais tenha alguma discordancia?

Se vemos como problematico que, por exemplo, pessoas adeptas de ideologias fascistas ou preconceituosas aproveitem das escolas como meio de propaganda, então eu também não deveria questionar o uso que dou a escola como veiculo de minha ideologia?

Em relação as pessoas que apoiam a aprovaçao do ESP, será que a simples criação de uma lei é o melhor caminho para «frear» as forças que querem usar as escolas como centros de doutrinamento politico, religioso e partidario? Quais outros caminhos poderiamos optar?

Existe «neutralidade politicdo estado, como diz o texto do anteprojeto de lei? Será que os objetivos alcançados através de um projeto de lei, que tem gerado tanta polêmica, serião respeitados e legitmados? Será que o anteprojeto de lei, que se diz questionar um determinado uso tendencioso da escola e do tempo escolar, não estaria, na pratica, também com finalidades politicas de determinados setores? Quais seriam?

O que podemos pensar e nos perguntar sobre o fato do projeto surgir em pauta logo num momento de tanta polarização polica?

Mais alguns pontos polêmicos e perguntas sobre o Escola Sem Partido

Além das perguntas acima, o projeto tem pontos que me parecem polêmicos.

Em seu artigo Art. 2º VII diz:

VII – direito dos pais a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções.

Ainterpretação desse texto não poe em perigo a liberdade catedra do professor? Sua interpretação não acaba criando o obrigação do professor de orientar suas aulas pelos designios da familia dos alunos?

E a partir das idéias de Masschelein e Simons, esse artigo não seria uma maneira de manter a porta da sala de aula aberta ao mundo exterior? Não seria mais uma maneira de o mundo invadir e controlar as matérias estudadas em sala de aula afim de domar a nova geração?

Em seu artigo 4º:

§ 1º As instituições de educação básica afixarão nas salas de aula e nas salas dos professores cartazes com o conteúdo previsto no anexo desta Lei, com, no mínimo, 90 centímetros de altura por 70 centímetros de largura, e fonte com tamanho compatível com as dimensões adotadas.

Através dessa obrigatóriedade, não estariamos mais uma vez, enfraquecendo a figura do professor diante dos alunos e das direções de escolas, criando um clima de vigilantismo prejudicial na relação entre professores e alunos? Pergunta semelhante poderiamos fazer sobre o artigo 8:

Art. 8º. O ministério e as secretarias de educação contarão com um canal de comunicação destinado ao recebimento de reclamações relacionadas ao descumprimento desta Lei, assegurado o anonimato.

Parágrafo único. As reclamações referidas no caput deste artigo deverão ser encaminhadas ao órgão do Ministério Público incumbido da defesa dos interesses da criança e do adolescente, sob pena de responsabilidade.

Mais algumas perguntas e reflexões

Pensar a escola e o escolar, baseados tanto no livro «Em defesa da escola- uma questão publica», quanto no ante projeto de lei, Escola Sem Partido, podemos elaborar várias perguntas. No final das contas, no que tange a questões educativas, o importante é manter discussões básicas sempre aquecida.

O atual contexto politico brasileiro parece nos levar a um ambiente de polarização e de defesa de idéias, posicionamento que me pergunto se contribui com a realização dialogo.

Talvez uma maneira de contribuir com a discussão seja tentando também suspender nossas «origens» ideologicas e sociais, nos vendo como iguais, de maneira que consigamos nos aproximar e ouvirmos mais uns dos outros.

Para termirnar, sugiro algumas perguntas para seguirmos pensando:

Será que resta algo de escolar em nossas escolas?

Como podemos manter esse questionamento vivo em nossas escolas e na sociedade?

Será que, no caso do ESP, esse ante projeto de lei não ajudaria ainda mais a matar o escolar dentro de nossas escolas?

Bibliografia

MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten. Em defesa da Escola: uma questão pública; Tradução Cristina Antunes. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.