Sobre intenções, olhares, ideias e a relação com o outro … ou das fichas que caem com vivências com uma ocupação urbana de luta por moradia

Por Dé

Enfim…

Me mudar para uma comunidade carente de acesso a direitos básicos e recursos sociais, em vários momentos me leva a reflexões que me desnorteiam e que gostaria de compartilhar de alguma maneira com pessoas próximas, apoiadores e pessoas envolvidas com realidades parecidas.

Gostaria de compartilhar porque penso que pode ser útil para pensarmos melhor nossos projetos, o desenvolvimento de processos educativos e com a construção de relações mais respeitosas e compreensivas.

Bom, …

Estou escrevendo da posição de uma pessoa que teve acesso a vários recursos sociais, muitos deles gratuitos, mas que para serem acessados, requerem um tipo de estrutura, seja ela de formação pessoal ou material. Estruturas as quais, muita gente não teve e não tem acesso.

Me envolvi e me mudei para uma ocupação de luta por moradia, que nasceu da associação de várias famílias de baixa ou sem renda, moradores de uma região a qual são negados até hoje recursos sociais básicos, como coleta de lixo, acesso a renda própria, saúde e a educação.

Organizada inicialmente com forte apoio de experientes movimentos sociais, a metodologia de organização da comunidade se baseou em uma coordenação de moradores e movimentos sociais, realização de assembléias e comissões, o que funciona muito bem.

Mas a medida que as pessoas dos movimentos sociais e apoiadores externos se afastaram, essa metodologia se enfraquece.

Não que esses espaços não sejam desejados e respaldados pela comunidade. Quando acontecem, são ocupados, frequentados e fortalecidos pelos moradores, que assumem suas decisões e fazem ecoar as discussões que ali acontecem. Mas por algum motivo, não assumem a posição de coordenadores desses processos, quando os movimentos sociais se distanciam.

Então esses espaço não acontecem quando movimentos sociais não puxam.

Acredito que aconteça, para além de uma assembleia e uma coordenação,  um outro tipo de autogestão e organização comunitária . Ela acontece, penso, de maneira invisível, e portanto, de difícil apropriação. Algo parecido com o que é tratado no artigo “Da Tirania dos grupos sem estrutura”, de Jo Freeman, de 1970.

É uma situação que me parece curiosa, e algo que não imaginava quando, cheio de anseios coletivistas, decidi envolver-me na comunidade. Me pareceu um distanciamento entre realidade e a teoria, ou pelo menos entre a realidade e os relatos e divulgações.

“E por que as e os demais moradores não assumem a coordenação desses espaços?”. Talvez porque o desejo e a experiência em coordenar esse tipo de dinâmica seja algo mais próximo das vivências e do imaginário pessoas mais «letradas», digo pessoas com níveis de escolarização mais elevados. Tratam-se de técnicas ou modelos de organização trazidos de outros territórios, que a comunidade acolhe, mas pouca familiaridade e experiência parecem ter de coordenar.

… questão parecida parece ressurgir quando apoiadores externos tem interesse em contribuir de alguma maneira com a comunidade, e trazem projetos e ideias mais acabadas, não construídas com os moradores da comunidade. Não sendo compreendidas, também não são bem apropriadas nem protegidas pelos moradores, culminando as vezes em desapontamentos e impressões negativas.

… e também em situações onde pessoas envolvidas com discussões especificas (como por exemplo ecologia, feminismo, repressão policial, dentre outras), as quais as moradoras tiveram pouco contato.

O ponto em comum me parece ser a tendência dos movimentos e apoiadores analisarem e planejarem dinâmicas a partir de ideias que circulam em outros territórios que não aquele da comunidade. A partir de ideias e conceitos produzidos por uma classe social que não é a mesma que ocupam territórios mais excluídos, e portanto, do qual pouco entendem.

A solução seria recorrer a teorias nascidas ou próximas das vivências do povo da periferia? … talvez…

Mas a academia é um espaço que é negado aos moradores das periferias. Somente 11% da população brasileira tem ou teve acesso a universidade, e provavelmente não são os mais pobres. E isso dificulta o nascimento de uma teorização em moldes acadêmicos a ancoradas em suas vivências.

E o que sugiro?

Não penso que todo o conhecimento produzido pelos e pelas teóricas da humanidade devam ser descartados. Acredito na importância do estudo, no desenvolvimento de técnicas e da construção de teorias que ajudem a direcionar nossas iniciativas. Mas hoje, com mais ênfase, vejo a necessidade de construção de projetos pensados e relacionados diretamente com as pessoas que o fazem e o espaço onde acontecem. Com os pés no chão… de maneira a encontrarem sentido nas pessoas envolvidas diretamente, nas de seu entorno e sejam reconhecidos no território onde acontecem.

Também acho importante reconhecer que independente de haverem instituídos espaços como assembleias ou coordenações, as comunidades tem suas dinâmicas e suas maneiras de se relacionarem, de se expressar e se construírem. Tentar compreender isso me parece fundamental. Talvez sirva par afastar pensamentos negativista e pejorativos, evitando também  criar leituras e olhares autoritárias e hierarquizantes.

E na medida do possível, criar dinâmicas que abram espaços de pensar e expressar juntos, de maneira a estimular a apropriação e o dialogo e não abafar outras opiniões.

Parece obvio? Mas me acertou em cheio e me pôs pra pensar.